quinta-feira, 15 de abril de 2010

O espírito do Espiritismo

Depois do sucesso do filme de Bezerra de Menezes, agora é a vida de Chico Xavier que está sendo levada ao cinema. E a coisa não para por aí: a obra Nosso Lar, que conta a vida depois da morte do espírito de André Luís, vai virar superprodução. (E já tem até novelinha da Globo pegando carona na onda.)
Em decorrência disso, o assunto tem surgido aqui e ali. Ouço comentários, leio posts, assisto a vídeos e programas televisivos sobre o Espiritismo.
Hoje eu gostaria de comentar um pouco o assunto.
Já li o Evangelho Segundo Espiritismo, O Livro dos Espíritos e Nosso Lar. Assisti aos dois filmes que mencionei no início. Também já frequentei alguns centros espíritas, embora sem uma continuidade ou um trabalho mais efetivo. Fui como "ouvinte". Já recorri a espíritas experientes, que me ajudaram em momentos difíceis, e faço o evangelho no lar semanalmente.
Algumas pessoas me perguntam se sou espírita, mas me sinto um pouco desconfortável em dizer que sim. Não tenho medo nem preconceito. Apenas acho que ser espírita não é somente ciscar o assunto, ler um livro ou xeretar fenômenos. O "espírito do Espiritismo" extrapola muito tudo isso e, antes de se dizer espírita, sinto que preciso ser mais do que um curioso.
É neste ponto que gostaria de tocar.
Primeiro, preciso expor como vejo alguns assuntos relacionados ao mundo do Espiritismo.
Para começo de conversa, não gosto do nome "Espiritismo". Essa palavra está muito associada ao termo "espírito" e aí reside um dos grandes problemas do código de Kardec.
Muitas pessoas ligam-se ao Espiritismo atraídas pelos fenômenos. De fato, eles são impressionantes. A possibilidade de conversar ou manter um contato com uma pessoa que está morta é fascinante, mexe com valores e emoções que não conseguimos gerenciar racionalmente. É um misto de medo, atração e emotividade que ofusca nossa mente. A experiência extrassensorial é avassaladora, invade todos os cantos obscuros da pessoa que somos e nos coloca abertos. A própria codificação kardecisca explica que isso é necessário como uma espécie de "chamariz" - e cumpre seu papel.
O problema acontece, porém, quando vemos que muitas pessoas acreditam que ser espírita realmente se restrige a isso.
E não é.
O Espiritismo é uma religião e, como tal, tem uma codificação. E essa moral tem sido relegada a segundo plano em favor dos fenômenos.
Eu tenho bronca disso, porque é como se comer a embalagem e se jogar fora o alimento.
A codificação do Espiritismo é a essência, a razão de ser de todo o resto. E mais: é belíssima, consoladora e coloca em outros patamares a vivência de qualquer pessoa.
Alguns conceitos são extremamente simples - como deve ser toda codificação religiosa - e, ainda assim, de um significado tão profundo, que não se escapa ileso dele.
Dentro da moral espírita, por exemplo, não se aceitam mistérios.
Isso é de um valor e uma de honestidade que nunca vi em qualquer outro lugar. Não existem grandes detentores de grandes e ocultas verdades, escondidas atrás de símbolos e códigos, mistificados em seitas ocultas. Tudo o que deve ser dito assim o é. De modo simples, claro e passível de compreensão por qualquer pessoa. O que vem em invólucro místico não é Espiritismo.
Também dentro da moral espírita existe um princípio muito importante: ninguém além de você controla sua vida. Se um bem é feito, ele provoca bem-estar. Se uma pessoa age de modo a provocar maldades, isso cria problemas para ela. Usando um exemplo do próprio Livro dos Espíritos, nas minhas palavras, se a baixela de porcelana da família quebrou na sua mão, isso não foi por causa de um mau espírito, mas foi sua falta de jeito.
Isso é uma ideia simples, mas muito significativa.
Uma pessoa que leva uma vida baseada em bons princípios, vive melhor do que aquela pessoa que se entrega ao crime, por exemplo. Por isso, fazer o bem, em qualquer circustância, é o certo.
Disso vem uma verdadeira obsessão do Espiritismo, que é a caridade.
A máxima de que "sem caridade não há salvação" é um bordão espírita. Quando vejo uma grande tragédia - como temos tanto visto, por aí - fica evidente o sentido disso.
A palavra "salvação", a meu ver, não tem o sentido católico de "salvar a alma", mas o sentido bem terreno de "salvar a própria pele".
Dependemos da caridade dos outros todos os dias e fazemos essa mesma caridade quando somos solicitados. Isso nos faz bem e ponto final. É a cesta básica que doamos, mas também aquele sorriso, o momento de paciência com uma pessoa perturbada. Isso salva nosso momento, salva nosso dia - essa caridade é a nossa salvação. Sem as pequenas e grandes caridades, nossa vida, esta mesma,  não tem jeito. Às vezes temos dias horríveis - somos ignorados, xingados, passamos por humilhações ou estresse físico, mental, moral e psicológico... e quanto valor, quanta luz nos joga nesse dia um gesto despretensioso de bondade de alguém - uma mão que pega um objeto derrubado no chão, e que vem com um sorriso; um bebê que nos dá uma risadona, uma carona numa sombrinha... É o que chegamos em casa contando. É a caridade sem a qual não nos salvamos.
E nossa caridade parece que nunca pareceu tão solicitada quando ultimamente...
Muito se fala também sobre a questão espírita de se cumprir, na Terra, um desígnio iniciado em uma vida passada - interpretado por algumas pessoas como se fosse uma dívida, ou um acerto de contas, com fatos que não estão hoje ao nosso alcance.
Sobre isso, a codificação espírita é curta e grossa: se você está aqui, hoje, tente acertar mais do que errar. Tente evoluir como pessoa nesta sua vida. Vou repetir: você está aqui para acertar mais do que errar - e nesta vida. O seu passado só terá sentido, ou o seu futuro só será melhor, se você, hoje, aqui, conseguir fazer alguma coisa decente. Em palavras mais simples: não importam suas encarnações passadas ou o que vai acontecer quando você morrer: importa o aqui e agora. Importa ser um ser humano melhor na quarta-feira do que aquele que você foi na terça. O restante é consequência.
Até aqui, como dá para perceber, não falei em fenômenos.
Aí é o ponto sobre o qual eu baseio meu pensamento sobre o assunto: os princípios espíritas são universais, portanto não dependem de fenômenos.
Não importa se o que está no Livro dos Espíritos foi ditado por um espírito mesmo ou por uma outra pessoa qualquer. Não importa se temos vidas passadas ou se teremos vida após a morte. Não importa se Chico Xavier foi santo ou fraude
Se todos os espiritos silenciassem, se as ideias sobre vida anterior ou posterior a essa existência acabassem, se os médiuns não escrevessem mais nenhuma linha - ainda assim, a caridade continuaria sendo nossa salvação, nós estaríamos vivendo a consequência diária dos nossos atos e uma religião que deixasse clara sua mensagem seria melhor do que qualquer outra.
Por isso, quando me indagam se sou espírita, realmente não consigo dizer que totalmente - porque, com toda a sinceridade, os fenômenos, a meu ver, dão bons filmes, boas novela, boas vendas de livros... e o modo como têm sido tratados está distanciando as pessoas da essência da mensagem.
E quantas são as mensagens! Profusões delas!
Não digo que devam ser desconsideradas, mas... será que há tanto o que se dizer que os conceitos básicos do Espiritismo não o façam?
Que consolo maior tem uma pessoa que perde um ente querido que o de saber que, em vida, fez-se a essa pessoa toda a caridade, a bondade que poderia ser feita?
Não seria mais relevante ensinar a ser caridoso nesta vida do que psicografar uma mensagem após a morte?
Que obsessão é essa pela volta de Chico Xavier... essa história de "assinatura secreta"? Isso tem lugar no Espiritismo? Código secreto... no Espiritismo?!  Por que o mensageiro tem sido mais importante que a mensagem?
Percebo que muitas pessoas têm um desejo firme de se manifestar espírita, assim como eu, mas têm sido inibidas por um sem-número de discussões que desviam o que, em essência, vimos buscar.
Não foi somente uma vez que presenciei pessoas que, após tomarem contato com o Espiritismo auto-denominaram-se "espíritos superiores" - e agem em relação aos outros - nós, os "espíritos inferiores"- com mal disfarçada soberba.
No meu entender, os espíritos mais evoluídos que estão entre nós, assim o são porque já cumpriram, com dor, resignação e dificuldades, as provas para se tornarem melhores. São nossas referências - as provas concretas de que a opção pelo bem é possível, real e exequível no mundo de hoje. São humildes por natureza, pois sabem a dimensão do papel que cumprem- da pesada carga que levam. E muitos deles nem estão num centro espírita...
Era isso o que eu gostaria de dizer.
Tenho certeza de que cometi muitos erros - e talvez injustiças.
O que escrevi não foi "ditado" por nenhum espírito - saiu da minha percepção de pessoa concreta, que busca um caminho para melhorar - e da indubitável crença de que a essência do Espiritismo é o caminho  - mas que se faz necessário um resgate dessa essência.
Estamos vivendo um momento em que essa oportunidade está tão visível em nossas mãos que seria imperdoável deixá-lo passar em brancas nuvens.
Acredito que tem chegado a hora de o Espiritismo mostrar a que veio.