quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A morte em Veneza e a gripe suína

Nesses dias de gripe suína e retorno às aulas, muitas coisas ruins têm acontecido. Tivemos, por exemplo, a notícia do falecimento do filho de uma professora, colega nossa. Estamos vivendo um momento de sustos. A doença e a morte parecem estar rondando nossos alunos, nossos amigos e cada um de nós. E tudo isso envolto numa névoa estranha. Um certo ar de "que é isso gente, já está acabando" e, ao mesmo tempo, notícias esparsas de um que saiu do hospital, um outro filho de professora que amanheceu com febre, um que espirra e silencia todos ao lado. Nunca vivi um ambiente assim em nenhum lugar. As nossas grávidas, todas cheias de novidades e barrigões, simplesmente desapareceram...
Eu me lembro de que quando eu era adolescente, simplesmente não conseguia pegar cedo no sono à noite - sempre fui meio coruja. Naquela época, ficava assistindo à tv de madrugada e passava o Cine Club. Foi assim que assisti ao filme A morte em Veneza pela primeira vez.
O mais engraçado foi que, quando fiz faculdade, acabei reencontrando essa obra no último ano do curso, num estudo do livro de Thomas Mann que baseou o filme.
O enredo é difícil de resumir - ou melhor, não se presta muito a isso, porque na verdade o que conta são os detalhes e a simbologia que T. Mann coloca na novela. Em linhas gerais, trata da história de um artista (Gustav von Aschenbach) que faz uma viagem a Veneza e, lá, acaba encontrando um jovem que sintetiza todo ideal de perfeição estética que o artista sempre imaginou - e que acaba por levá-lo a desenvolver um fascínio pela figura do menino.
As interpretações são muitas e são apaixonadas. Há os vêm do lado de cá e dizem que isso é a coisa mais gay do mundo; e há os que vêm do lado de lá e dizem que falar isso sobre a obra é comer a casca e jogar a fruta fora - e desandam a associar o texto à história da Alemanha contemporânea. Na minha modesta opinião, ignorar qualquer desses dois lados da obra é perder muito. A graça de uma visão do enredo é justamente a presença da outra. Fico com as duas.

Deixando essas digressões de lado, o que realmente assusta na obra é que a cidade de Veneza, para nós o símbolo do romantismo, com seus gondoleiros e canais, está sendo assolada por uma peste. O mal é ocultado pelas autoridades, que temem uma debanda dos turistas aristocratas numa cidade de veraneio. Mas o mal ronda a cidade, que a todo momento é desinfectada.
A Veneza que é mostrada é uma cidade que apodrece, com a água de seus canais repleta de doenças e morte.
Em meio a tudo isso, o deslumbramento de Aschenbach não consegue deixá-lo partir, embora ele consiga perceber cada vez mais a morte se espalhando pelos cantos da cidade. Os turistas não se dão conta - desfrutam praia e lazer, enquanto a peste se alastra de forma oculta.
Esses dias na escola, a sensação que tive foi exatamente assim. Um bando de crianças e também adultos vivendo despretensiosamente seu dia a dia, com o cheiro de álcool nas mãos e a conversa de corredores sobre um espirro, uma febre, uma morte...

sábado, 15 de agosto de 2009

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Monalisa in fire!!!!

Uma vez, quando eu era pequena, eu tentei fazer uma "receita surpresa" para minha avó. Mas na hora de ir ao forno o negócio desandou e ficou uma meleca. Quando a velha chegou da igreja e viu aquela gororoba, tomei a maior catracada. Ainda tentei argumentar que aquilo... poderia ter uma salvação. Aí ela disse uma frase que, para mim, foi célebre:
- Também! Com esses ingredientes!
Ela se referia ao leite condensado que eu tinha colocado na receita... e que foi para o lixo, junto com o resto.
Mas essa "sábia lição" trazia muita "sabedora" por trás. De modo simplificado: tem gente que consegue, sim, pegar excelentes ingredientes e fazer cada porcaria absolutamente inimaginável.
E tem uns aventureiros - eu me incluo no grupo - que conseguem fazer pior: achar que a gororoba tem salvação!
Isso tudo é para falar de um filme.
O nome é Equilibrim. Nos ingredientes estão ninguém menos que Christian Bale e Sean Bean. A história é de uma sociedade que, para resolver seus problemas, obriga seus cidadãos a ingerir uma droga que inibe os sentimentos - tanto os bons quanto os ruins. O discurso é de que os sentimentos motivam as desgraças - e os que não concordam (os "rebeldes") vão para o paredão, sob uma chuva de balas.
Que tal? Você assistiria?
Bem, eu fui nessa... (Detalhe sórdido: o slogan do filme é "Esqueça Matrix!".)

O filme... bem... melhor não gastar adjetivos.
Mas...mãããããsssss... toda gororoba tem seu leite condensado!

No filme, tudo o que é relacionado à arte e à estética, ou seja, o que pode lembrar sentimentos, é sumariamente destruído (mais chuva de balas). E os tais rebeldes são protetores dessas obras - livros, filmes, discos, quadros e tudo mais.
Nas cenas iniciais, mostra-se um ataque a uma "fortaleza" cheia de rebeldes e a caça às obras que eles escondiam. E num desses buracos, está a Monalisa...
Bem, pelo título do post já dá para ter uma idéia do que acontece.
Vou colocar o início do filme, mas já adianto que quem gosta de qualidade em cinema, não deve gastar tempo com o resto. Se não quiser ver o início todo, que tem quase dez minutos, vale a pena ver o trecho que eu citei, que vai do 6:00 até 7:15.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Apuros que passei por causa de José Cândido de Carvalho


Acho que poucos autores brasileiros são tão deixados de lados como o Zé Cândido.
O cara realmente é de-mais!!!!!!
Começa que ele tem um talento muito especial: humor na escrita. Já vi humor no teatro, na internet, na tv... mas boa literatura, sob uma linguagem de primeira, e realmente de rolar de rir - isso é só com ele mesmo.
Tenho o costume de carregar o livro que estou lendo para todo canto e, quando li O Coronel e o lobisomem, cheguei a passar apuros, pois não é em todo lugar que você pode dar uma gargalhada ou ficar com cara de riso.
Fiquei decepcionada quando vi o filme. A alma da história está na linguagem e na ingenuidade do coronel Ponciano de Azeredo Furtado, o que foi feito de forma muito rasteira na filmagem da obra. O Diogo Vilela, a despeito da qualidade de tudo o que faz, não ficou bem no papel.


Minha paixão pelo Zé Cândido ficou mais séria quando li um livro dele que, na minha opinião, é muito prejudicado pelo título. Chama-se "Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon". É um nome esquisito demais e que acaba arredondando para baixo o conteúdo.
Acabei comprando esse livro na Siciliano do shopping num dia meio sem inspiração. Quando chego por lá, sempre "passo em revista" as prateleiras do fundo, porque as ilhas ali da frente são meio manjadas. Peguei esse livro por obra de um sopro de anjo (dizem que os anjos vivem nas bibliotecas... pode ser que algum tenha gostado da livraria do shopping), li as primeiras páginas e aconteceu de novo: comecei a rir que nem doida, agarrei no livro, olhando meio de lado, como se tivesse medo que alguém quisesse levá-lo de mim! Paguei trinta e poucos reais e foi pouco pelo tanto que ele me divertiu.

Quem acabou pagando o pato foi o Rafael, porque eu andava pela casa atrás dele, lendo as historinhas do livro.
Mas ele acabou gostando.
Para quem quiser uma palhinha, o site Releituras tem um cantinho dedicado ao Zé Cândido. Vou reproduzir abaixo um conto que está lá:

Tatão, o esquartejador

José Cândido de Carvalho

Era domingo que pita cachimbo e Tatão Chaves aproveitou para pedir Lili Mercedes, mestra de letras, em casamento. A cidadezinha de Monte Alegre, sabedora da novidade, botou a cabeça de fora para presenciar Tatão em cima das botinas de lustro e por baixo dos panos engomados. Para avivar a coragem, Tatão bebeu, no Bar da Ponte, meio dedo de licor, coisinha de aligeirar a língua e aromar a boca. Como achasse o licor educado demais, mandou cruzar a bebidinha com cachaça de fundo de garrafa. E recomendativo:

— Daquele parati mimoso que até parece flor de jardim.

De talagada em talagada Tatão perdeu a mira da cabeça. Embaralhou o pedido de casamento com negócio de disco-voador, imposto de renda e busto de moça. A essa altura, gravata desabada e camisa fora da calça, Tatão preveniu:

— Sou o maior dedilhador dos desabotoados das meninas já aparecido em Monte Alegre. Sou Tatão Chupeta!

Gritava que era monarquista, que era a favor da escravidão e que o prefeito de Monte Alegre não passava de uma perfeita e acabada mula-sem-cabeça. E para arrematar, ganhando a porta do Bar da Ponte, garantiu:

— Só queria que aparecesse neste justo instante um boi cornudo para Tatão esfarinhar o chifre do sem-vergonha a bofetada!

Nisso, um boizinho desgarrado apontou na esquina da Rua do Comércio. Tatão cumprindo a promessa, armou o maior soco do mundo. E atrás do soco saiu Tatão, atravessou a Praça 13 de Maio, entrou no Mercado Municipal, desmontou duas barracas, esfarelou um comício de tomates e só parou no Açougue Primavera. E meio adernado sobre um quarto de boi que sangrava em cima do balcão:

— Soco de Tatão é pior que canhão de guerra. Mata e esquarteja!