terça-feira, 30 de junho de 2009

Comercial Inteligente

Com especiais agradecimentos ao Sérgio, do Culturatura, pois eu já tinha perdido esse comercial maravilhoso:


domingo, 28 de junho de 2009

Só se é menina por pouco tempo na vida...

Vi este comercial quando tinha uns 13 anos e - ACREDITE QUEM QUISER- o que mais me impressionou foi a música!




Quem sabe se eu tivesse visto este:

Ou este:



Pois é. Só se é menina por pouco tempo na vida.

(Ainda bem...!?)

Minhas terras


Tenho um canteiro em casa que mede dois palmos de largura por 3 passos de comprimento (perdão por não falar em metros quadrados e coisas afins) e que eu chamo hiperbolicamente de "minhas terras".
Falo dele porque um dia, se Deus viesse tirar satisfação comigo, “tipo” discutir a relação, eu lhe diria: Papai, por que você não me deu aquele talento que vejo em algumas pessoas, de ter fertilidade nas mãos? Sabe aquele negócio de enfiar um matinho na terra e depois de um tempo o galhinho estar carregado de flores?
Pois é... o debate ia ser duro.
Mas enfim... nas “minhas terras” eu já fiz “miliuma” experiências. Já plantei semente, já adubei, já plantei muda, já mandei plantar um monte de coisas... já fiz o diabo. E nunca foi nada muito pra frente.
Aí resolvi largar mão. Pra não ficar pelado, coloquei umas mudinhas de temperos e coisas do gênero. Que desse quem quisesse... e qual foi a surpresa?
Elas gostaram. Tem hortelã, alecrim, melissa, lavanda, manjericão e cânfora. Plantei depois também um galhinho de hera – que já está crescidinho, trepando na minha calha, obediente. Até tirei um tequinho dele e pus num vaso – já está bonitinho também. Minha avó tinha me dado um galhinho de dinheiro-em-penca: virou praga, tive de arrancar. Pus num vaso que eu tinha e ficou mimoso. Resumindo: depois que parei de inventar moda, “minhas terras” até que foram pra frente.
Nesses dias de frio, fiz um mimo: meu pezinho de lavanda estava cheiroso, então arranquei uns galhinhos, fervi água e coloquei em duas bacias, sob a cama, para mim e para o meu marido, porque o ar estava muito seco. Uma delícia!
Mas existe uma lição nisso tudo: aquela história de dar tempo ao tempo. Na verdade, pra lidar com qualquer coisa da natureza, tem que ter paciência e saber observar. E isso não depende de talento. É só querer aprender.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Cais da sagração


Minha estante se parece com as ruas de Caçapava, por onde perambulo todos os dias.

Existem aqueles pedaços com casas chiques e novas, que poucos passos depois se transformam em residências medianas, mas novas. Aí tem aquela viela cheia de casebres pobres e depois umas casas também medianas, mas antigas. Tudo assim de misturada, sem muito planejamento.

Minhas prateleiras são assim, também.

Existe a fileira dos livros novos e cheirosos, de edições bonitinhas e capas novas; logo depois, vêm aqueles cacarecos catados de sebos, na sequência uma coleção mediana de edições de banca.

E existe o condomínio dos livros clássicos, de edições com capa dura e papel jornal, se não me engano da Record. É algo bem dentro do conceito "o que importa é o conteúdo", já que a desgraça do papel jornal é que, passados alguns anos, o treco começa a ficar com um cheiro medonho.

Esses livros eu comprei na banca. Alguns eu já li e outros ainda não - ficam ali esperando uma certa vontade.

E eis que esses dias eu fui acometida por essa tal vontade - e resolvi pegar um volume chamado Cais da Sagração, do senhor Josué Montello. Esperava uma leitura pesada e lenta - e de repente não consegui mais me desgrudar das vivências do grande Mestre Severino, sua Vanju, sua Lourença.

Fiquei de amores pela leveza do texto, simplicidade e principalmente pelas rupturas de narrativa. Ainda não acabei de ler a obra, mas me espantei e me apaixonei. Conto mais logo-logo.

Chuva na língua

Hoje foi um daqueles dias encharcaaaados.
Como eu tinha de fazer mil coisas na cidade, não teve jeito: tomei chuva pra caramba. E a pé, como sempre. Nessas horas, não adianta me oferecer sombrinha nem carona. Pra não dizer que queria passar frio, levei a jaquetona preta, que me deixa com cara de "Black Chapeuzinho".
Chuva é uma coisa de oito ou oitenta - ou você entra nela e esquece da vida, deixa correr. Ou fica olhando pela janela. O que não dá é pra ficar se escondendo de gotinhas.
E também para não dizer que me fuuurrrteeei ao meu gosto, olhei pro céu e botei a língua pra fora, na maior curtição que uma pessoa pode ter.
Nessas horas, eu tenho a memória da combinação gostosa de duas coisas: infância e bênção. Aquelas mínimas gotinhas que caem na língua parecem um contato direto e divino com o de-dentro da gente. E há uma certa dose de molecagem em escancarar a boca no meio da rua, cheia de gente olhando com cara de estranheza e inveja.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Luvas de cimento

Dia desses estava fazendo alguma coisa e a televisão estava ligada. Nos dias de hoje, às vezes temos a nítida impressão de que a tevê é que está nos assistindo. Passava um filme e um policial, em um momento de filósofo, perguntava insistentemente a outro qual era o sentido da vida. “Qual o sentido da vida? Qual o sentido da vida?” Não me lembro a resposta do outro, mas deve ter sido alguma coisa que um policial responderia.O fato é que a pergunta ficou no meu ouvido - sem novidades.Ontem fui a um consultório médico. Espera que espera, eu acabei fazendo o óbvio: pegando uma daquelas revistas sem capa, cheias de fotos, para poder folhear. Uma outra revista era um magazine de variedades, que eu nunca tinha visto. Comecei a ler, até que achei alguma coisa que prendeu minha atenção: um dvd sobre a vida de um pugilista, cujo nome não me lembro - e de quem eu nunca tinha ouvido falar.
O rapaz teve uma carreira meteórica, era uma grande promessa, até que encontrou um inimigo que o colocou no chão. Não no sentido figurado, no real mesmo: o seu concorrente, numa luta, bateu de tal forma no rosto do tal pugilista que o deformou irrecuperavelmente. A capa do dvd trazia a foto do antes/depois, mostrando a figura assombrosa do que ele havia se tornado, isso aos vinte anos. Depois, soube-se: o seu concorrente havia lutado com cimento escondido dentro das luvas. Isso foi confessado. O fato é que a carreira do rapaz acabou e pouco depois ele morreu num acidente de carro.Quando li essa história, pensei no absurdo, no impensável, na última das misérias: a covardia.Pensei também que aquela era mais uma situação em que eu redefinia, dentro de mim, o sentido dessa palavra. E pensei, por fim, em como estamos, em nossas vidas, a todo momento, redefinindo aquilo que tomamos como um conceito pronto há poucos minutos.O fato é que nossa mente - esse imenso carretel que vai se desenrolando e alinhavando fatos, memórias e visões em um imenso varal que chamamos de idéia - não se cansa de perguntar o que é isso, o que é aquilo. E parece que estamos sempre fazendo com que o mundo que nos circunda se agregue em forma de significado e corra atrás de seu par - em outras palavras: fazendo com que as respostas, na contramão, só depois de prontas, se unam a suas perguntas.E aí estava, então: há alguns dias, se me perguntassem o que era covardia, eu poderia citar que era uma madrasta estrangular uma menina de cinco anos e o pai jogá-la pela janela. Depois, eu defini como covardia um pai trancar a filha por vinte e quatro anos e usá-la como escrava sexual. Agora, já posso dizer que a isso se acrescenta massacrar com luvas de cimento o rosto de um campeão.Sou relativamente jovem, tenho trinta e seis - e sei que ainda vou redefinir essa palavra muitas e muitas vezes.Agora vejo de novo aquele tal policial do filme. Ele está entrando pela minha janela-televisão e começa a perguntar de novo o sentido da vida. Acho que a vida está acima do sentido, mas hoje - hoje - eu penso que ela também está nesse eterno redefinir de coisas.Enfim, achar as perguntas certas para o monte de significados que, como serpentes, vão se enrolando em nossas mentes, nossos espíritos e nossos corações.

Texto do final de 2008 (andava perdido no micro).

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Conto de fadas

Escrevi esse conto de fadas para uma atividade do curso...

Era uma vez um rei, chamado Hélio, que vivia numa terra muito distante e bonita, chamada Vale das Cores Coadas. Ele vivia com sua esposa, a rainha Nena, e uma filha, a Princesa Sara.
O Vale das Cores Coadas era um lugar muito especial, recoberto com verdes campinas e uma floresta de árvores muito raras, cujos galhos se abriam para os céus como dedos. Por entre as frondosas ramadas das árvores milenares, o sol passava e se dividia em dezenas de cores, colorindo as terras do reino como nenhum pintor jamais fizesse.
Rei Hélio era um homem muito justo e forte; durante toda sua vida havia reinado com sabedoria suas terras, pois sabia que nelas se escondia um tesouro muito especial:dentro das altas muralhas do Reino das Cores Coadas ficavam os mananciais dos rios Nates e Mylos.
Desde que o mundo era mundo, seus ancestrais haviam protegido aquelas nascentes, pois se dizia que se, um dia, elas caísses em mãos erradas, toda a água do mundo estaria arriscada a perder-se. Então, de geração em geração, aquele reino fora protegido pelos ancestrais do rei Hélio.
Conta-se, porém, que ele não protegia sozinho aquelas nascentes.
Dizia-se que, no meio pedras geladas de onde brotavam as primeiras águas dos rios, vivia um bruxo chamado Undeclo. Ele era o guardião natural das águas; ninguém nunca havia visto seu rosto, mas quem fosse até as pedras poderia ouvir seu sussurro em forma de vento.
Um dia, porém, a guerra explodiu.
O entorno do reino, ano após ano, viu perecer cada terra. As aldeias foram-se extinguindo, os reinos foram minguando e as terras de Cores Coadas viram-se, em pouco tempo, cercadas por hordas de vilões, liderados pelo rei Jaquel.
Jaquel era o vigésimo descendente de Marquel, um rei cuja maldade era tamanha que nem mesmo o tempo conseguia abrandar. Reinara Jaquel a vida toda com uma ambição: a de tomar Cores Coadas, pois sabia que somente a posse das nascentes daria a ele o poder definitivo sobre todos os reinos da terra.
Um dia, o mensageiro de Jaquel entrou pelas muralhas do reino e foi até o palácio. Chamado para ouvir a mensagem, o rei, sua família e toda a corte se reuniram na sala imperial: avisava Jaquel que o reino estava todo cercado e que a invasão não tardaria. E dizia que somente havia uma forma de todos não serem dizimados: era o rei entregar a mão de sua filha, a Princesa Sara, a Jaquel. Assim se fazia a posse pacífica do reino e ele seria preservado.
Muitas foram as lágrimas naquele momento terrível. A pobre princesa, vendo assim selado seu destino, mal ergueu a voz ou os olhos. Vivera até ali toda a beleza da sua despretensiosa juventude, e se a morte por morte viria, então que fosse salvando as vidas de seus súditos. Assim em poucas palavras falou ela aos ouvidos do pai, quando este ainda tentava resistir ao destino.
Viu o rei Hélio o coração de realeza que havia em sua filha. Era rei também e sabia o que devia fazer.
Naquele dia, o sol não apareceu com suas cores sobre o reino...
Sara então esperou a noite chegar. Desceu devagar a escada de ciprestes que ia da janela de seu quarto até o chão e, com os pés descalços em meio à relva úmida da noite, correu rápida pelas árvores de Coa Cores até chegar à grota mais úmida e escura das nascentes.
- Undeclo! – chamou a pobre, já de joelhos sobre as pedras.
Silêncio. Nenhuma resposta a seu apelo.
Ainda chamou Sara muito pelo bruxo. Chamou até ficar sem voz - então chorou desesperada até não suportar mais. Seu coração já não tinha mais esperanças quando, de repente, um sussurro de vento moveu seus cabelos.
- Venha...
A voz chamava para dentro da gruta. Sara não hesitou e com as forças que ainda lhe restavam, entrou sem medo pela caverna escura.
De repente, milhares de seres iluminados, minúsculos, começaram a aparecer e dar forma e luz a seus passos. Um vento envolveu seu corpo e seus pés, - então sentiu que eles não tocavam mais o chão: uma leve nuvem conduzia-a pela trilha de luz dos serezinhos. Subitamente sentiu que seus ombros eram aquecidos por um manto de flores trazido por dezenas de libélulas. A nuvem de ventou ergueu-a bastante, até colocá-la sobre um assento de pedras recoberto por flores. Os seres iluminados coloriam a capela da gruta, formando danças coloridas que enfeitiçavam seus olhos. De repente, a voz de vento fez-se ouvir:
- Sara...águas calmas de amor, águas turvas de dor... Seu coração é água...
A Princesa acordou de repente, já em seu quarto. Teria sido um sonho? Aquelas palavras não saíam de sua mente...!
Era já o outro dia e o exército de Jaquel a aguardava. Seu coração estava cheio de uma coragem que nunca havia sentido. Preparava-se sua ida para depois dos primeiros raios que coassem pelas árvores. A Princesa não se abalava nem mesmo com as lágrimas do reino e dos pais, que estavam a seu lado a todo momento. “Águas calmas de amor, águas turvas de dor. Seu coração é água...”
Havia algum segredo naquelas palavras. Mas qual...? O tempo passava...
O dia caiu rápido e quando os portões foram abertos, Sara então estremeceu. Milhares de soldados raivosos, liderados por um cavaleiro embrutecido, aguardavam sua ida. Atrás de si o reino chorava. As palavras repetiam-se em seus ouvidos quando de repente, uma libélula passou, rápida, e desapareceu carregando seus olhos. Ela então ergueu a visão: o exército inteiro... do lado direito o rio Nates... do lado esquerdo o rio Mylos. Sara ergueu os braços:
- Águas calmas de amor... Águas turvas de dor... Meu coração é água.... é água... – sua mente iluminou-se: Que vai por onde eu for!!
Um ruído assombroso foi ouvido. Uma chuva forte começou sem razão e os rios, calmos e tranqüilos, começaram a encher-se subitamente. O exército comprimiu-se entre as águas, que subiam sem controle. O céu escureceu. Jaquel, imóvel, olhava a Princesa de longe. As águas dos rios começaram a fechar o círculo em torno do exército; ondas ergueram-se e, como ferozes línguas, carregaram para o fundo das águas os audazes guerreiros.
Pouco tempo durou o terrível espetáculo e, quando as águas furiosas dos rios voltaram ao seu leito, todo o exército havia sucumbido.
O reino quedou pasmo diante da cena. E mais ainda se assombrou quando viu, ao lado da Princesa, ainda imobilizada em seu transe, a figura de um exército de luzes que caminhava em direção às águas dos rios e sumia – os ancestrais de Sara não a abandonaram.
Dizem que quem passa perto dos rios hoje é capaz de ouvir um sussurro de vento. As palavras são ininteligíveis, mas alguns dizem sentir uma inexplicável força que vem daquelas águas: uma força mágica, vinda das profundezas do mundo, que transita em cada se vivo em forma do líquido milagroso. É a voz do mago Undeclo, capaz de ressurgir o exército de luz para proteger nossa essência mais pura, sem a qual a vida não existe.

Cidades invisíveis

Poema que fiz depois que li Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino:




Invisível




Imaterial
Invisível linha
Desce do além
Para onde vai
A voz que caminha

Cidade oculta
Em círculos
Concêntricos
Refletidos no mar
Em superfície silêncio
Contornos idênticos



Cidades sensíveis
Voz do viajante
Que descreve
Os diálogos do rei
O império infinito
Que lhe serve

Nave voz
Barca palavra
No porto dúvida
Da linha invisível
Entre a teia idéia
Da renda que sustém
O indizível

Cidades invisíveis
Erigidas no mapa
De verdades perdidas
Sonho imperial
Concreto de sedução
Das palavras fadas
Entre a janela e o umbral


(4/12/2007)

Recontando conto

Lá vai um conto que escrevi para o curso que fiz.

Ana

Ela dizia que era gótica. Por isso andava sempre com roupas esquisitas. Também tinha outra marca: uma capa, do tipo chapeuzinho vermelho, cujo capuz, preto e alongado na nuca, às vezes escondia seu perfil, deixando somente a ponta de seu nariz à mostra.
Não sei bem como a conheci. Acho que ainda era moleque. Eu vivia nos cantos. Na escola eu era o esquisito. Não sei por quê. Eu viva sozinho porque não gostava dos outros meninos. Conversa fiada. As meninas eram umas idiotas, não conseguiam falar outra coisa que não fosse dos meninos.
De alguma forma, sem que eu percebesse, ela entrou na minha vida. Eu ia à escola e ela, de repente, estava do meu lado. Conversava comigo sobre várias coisas. Às vezes recitava uns poemas longos. Aquilo me dava sono, mas também me embalava. Eu ficava tonto, meio abobado, e ela me guiava. Sua mão era sempre fria.
Seu rosto era pálido. Disso eu me lembro bem, porque quando perguntei por que ela não tirava aquele raio de chapéu, ela me respondeu que tinha um problema de pele. Algo estranho: não podia tomar sol. Fiquei intrigado e ela riu. Seu sorriso era um diabo de bonito, mas acontecia pouco.
Uma vez, cheguei a vê-la em casa. Ou melhor: da janela. Achei que ela me seguira. Achei até que estava interessada em mim, mas não pensei mais nisso. Não queria saber de ninguém, porque não achava que fosse dar conta. Gostava só de suas aparições assim meio repentinas, quando eu estava distraído. Uma vez, no sofá de casa, eu tive a impressão de vê-la, mas não era nada, só a cortina que balançava. Naquela noite, eu estava também baqueado. Queria entrar na escola da aeronáutica, estudava que nem um condenado e às vezes pirava. Caía em cima dos livros, despertava no meio do nada, tinha sonhos doidos.
Naquele ano também aconteceu uma coisa esquisita. Eu tinha que operar os olhos, porque senão não passava no exame físico. Era cirurgia simples, corretora. Fiz. Por um tempo fiquei enxergando embaçado e via a imagem dela em todo lugar. A verdade é que Ana, esse é seu nome, não me visitava havia muito tempo, e eu sentia uma saudade esquisita. Uma falta absurda de suas conversas e seus poemas cheios de coisas que eu não entendia.
Passei na prova, passei no exame, saí de casa e me arrependi. Aquilo não era vida: estudar e sofrer na mão daqueles militares. Só uma coisa me ajudava. Eu via Ana. Aceitava já a essa altura que ela estivesse no meu quarto, me esperando, quando a noite chegava. Aceitava também já que ninguém mais a via. Aceitava também que ela sorria mais por aquela época.
Colei grau e lá estava ela, sentada no fundo da sala. Estava linda – seu rosto claro brilhava lá no fundo, sua boca vermelha também e, pela primeira vez, consegui vê-la sem aquele capuz horrível. Era apenas Ana.
De alguma forma, a vida militar se impregnou em mim. Eu era sozinho de pessoas do mundo, pois me bastavam as visitas de Ana. Ganhei distância de meus pais por causa das tantas viagens que fazia e, num ambiente daquele, pode-se fazer uma amizade aqui, outra ali, mas nada duradouro. Também era considerado estranho pelos colegas. Só não o era para meus superiores.
Eu fiz carreira rapidamente. Eu gostava de voar e o fazia bem. Era uma “curva fora da linha”, como diziam, e eu confesso: algumas coisas sabemos fazer como ninguém.
No ano em que a guerra veio, meu nome estava no topo da lista. Meu avião tinha missões certas, cirúrgicas. Era meu dever, eu sabia. Nada tinha sido uma escolha ingênua na minha vida. As bombas que eu carregaria tinham endereço certo.
Talvez tantas certezas pudessem ter eliminado o nervosismo que residia em meu corpo – mas nada me acalmou mais que a voz constante de Ana em minha mente, sua presença fria e permanente ao meu lado.
O dia em que limpei do mapa minhas primeiras vidas foi memorável. Doloroso, sentido, mas memorável. Sabia que Ana estava orgulhosa. Naquele final de tarde, encontrei-a sentada em minha cama. Ela ergueu-se:
- Vamos indo. Ainda vou trabalhar a noite inteira no Iraque, meu rapaz.
Não tive dúvidas. Aceitei sua mão fria. Alguns destinos são certeiros como bombas de guerra – não há que se fugir deles.

Reciclando comportamentos

Recebi uma revista esses dias e, junto com aquela papelada que vem no plástico, ganhei uma cartilha sobre comportamento sustentável. ...E quando comecei a ler as informações, imediatamente me lembrei de minha avó.
Algumas pessoas que, como eu, convivem com idosos lúcidos na faixa dos 80 anos podem não estranhar o fato. Mas outras podem até se perguntar o que uma pessoa nessa idade tem a ver com um assunto assim tão atual.
A resposta a essa questão é simples. Pessoas como minha avó viveram numa época muito diferente da nossa. Coisas que hoje fazem parte da nossa vida, como água corrente na torneira, foram novidades que elas vieram a conhecer junto com seus netos. Água, portanto, sempre foi um luxo. Desperdício de água era um conceito que não existia. Lembro que ela, quando ia lavar a louça, separava um fundo de água numa vasilha e passava todos os pratos antes, tirando os restos de alimento. E aquela “agüinha” com restinhos de comida era usada para “dar um gostinho” na comida dos cachorros.
A água limpa que gotejava era disciplinadamente recolhida e usada na descarga de urina. Os restos orgânicos eram lançados num canto do quintal para virar esterco. Aliás, desperdício de alimento era símbolo de incompetência ao se administrar a casa. E olha que, na memória mais antiga que tenho dela, os filhos já eram crescidos, portanto ela vivia apenas com meu avô em casa – duas pessoas. O que dizer de quando raspo algum resto de alimento no lixo com a desculpa de que em casa somos só dois e sobra, mesmo? Na dela, tudo sempre foi reaproveitado e transformado.
Muito antes de se falar em reciclagem, ela usava embalagens plásticas ou de vidro com uma disciplina impensável nos dias atuais. As vasilhas dela, assim como panelas e outros objetos, têm personalidade própria e história. Pote de sorvete, então, era um fetiche – se emprestasse e não devolvesse, era bronca na certa!
Algumas pessoas podem até pensar que esses hábitos comprometiam os conceitos que hoje temos de higiene. Pois o engano é grosseiro! A casa dela sempre foi de uma limpeza invejável... A idéia de reaproveitar está intrinsecamente associada à de limpeza.
E quando a era dos “reciclas” veio, ela mais do que se sentiu em casa. As famosas embalagens PET se transformaram em dezenas de coisas – vasos de plantas, enfeites, apoios de outros objetos... enfim, uma infinidade de usos. Papéis de presente também sempre foram um estímulo à imaginação: bem guardados, viravam depois cobertura para prateleiras, com simpáticos “bordadinhos” de picote. Outra diversão dela era pegar as caixas de remédio e fazer casinhas, igrejinhas e cidades inteiras, berços em miniatura e caminhas de caixas de fósforo para a gente poder brincar.
Tudo, tudo, tudo sempre foi reaproveitado.
Agora penso de novo na cartilha. Sem dúvida, as idéias que estão ali são excelentes. Mas não são novas. Renovam seu ciclo nos dias de hoje assim como tudo na natureza – são boas idéias recicladas.