segunda-feira, 22 de junho de 2009

Recontando conto

Lá vai um conto que escrevi para o curso que fiz.

Ana

Ela dizia que era gótica. Por isso andava sempre com roupas esquisitas. Também tinha outra marca: uma capa, do tipo chapeuzinho vermelho, cujo capuz, preto e alongado na nuca, às vezes escondia seu perfil, deixando somente a ponta de seu nariz à mostra.
Não sei bem como a conheci. Acho que ainda era moleque. Eu vivia nos cantos. Na escola eu era o esquisito. Não sei por quê. Eu viva sozinho porque não gostava dos outros meninos. Conversa fiada. As meninas eram umas idiotas, não conseguiam falar outra coisa que não fosse dos meninos.
De alguma forma, sem que eu percebesse, ela entrou na minha vida. Eu ia à escola e ela, de repente, estava do meu lado. Conversava comigo sobre várias coisas. Às vezes recitava uns poemas longos. Aquilo me dava sono, mas também me embalava. Eu ficava tonto, meio abobado, e ela me guiava. Sua mão era sempre fria.
Seu rosto era pálido. Disso eu me lembro bem, porque quando perguntei por que ela não tirava aquele raio de chapéu, ela me respondeu que tinha um problema de pele. Algo estranho: não podia tomar sol. Fiquei intrigado e ela riu. Seu sorriso era um diabo de bonito, mas acontecia pouco.
Uma vez, cheguei a vê-la em casa. Ou melhor: da janela. Achei que ela me seguira. Achei até que estava interessada em mim, mas não pensei mais nisso. Não queria saber de ninguém, porque não achava que fosse dar conta. Gostava só de suas aparições assim meio repentinas, quando eu estava distraído. Uma vez, no sofá de casa, eu tive a impressão de vê-la, mas não era nada, só a cortina que balançava. Naquela noite, eu estava também baqueado. Queria entrar na escola da aeronáutica, estudava que nem um condenado e às vezes pirava. Caía em cima dos livros, despertava no meio do nada, tinha sonhos doidos.
Naquele ano também aconteceu uma coisa esquisita. Eu tinha que operar os olhos, porque senão não passava no exame físico. Era cirurgia simples, corretora. Fiz. Por um tempo fiquei enxergando embaçado e via a imagem dela em todo lugar. A verdade é que Ana, esse é seu nome, não me visitava havia muito tempo, e eu sentia uma saudade esquisita. Uma falta absurda de suas conversas e seus poemas cheios de coisas que eu não entendia.
Passei na prova, passei no exame, saí de casa e me arrependi. Aquilo não era vida: estudar e sofrer na mão daqueles militares. Só uma coisa me ajudava. Eu via Ana. Aceitava já a essa altura que ela estivesse no meu quarto, me esperando, quando a noite chegava. Aceitava também já que ninguém mais a via. Aceitava também que ela sorria mais por aquela época.
Colei grau e lá estava ela, sentada no fundo da sala. Estava linda – seu rosto claro brilhava lá no fundo, sua boca vermelha também e, pela primeira vez, consegui vê-la sem aquele capuz horrível. Era apenas Ana.
De alguma forma, a vida militar se impregnou em mim. Eu era sozinho de pessoas do mundo, pois me bastavam as visitas de Ana. Ganhei distância de meus pais por causa das tantas viagens que fazia e, num ambiente daquele, pode-se fazer uma amizade aqui, outra ali, mas nada duradouro. Também era considerado estranho pelos colegas. Só não o era para meus superiores.
Eu fiz carreira rapidamente. Eu gostava de voar e o fazia bem. Era uma “curva fora da linha”, como diziam, e eu confesso: algumas coisas sabemos fazer como ninguém.
No ano em que a guerra veio, meu nome estava no topo da lista. Meu avião tinha missões certas, cirúrgicas. Era meu dever, eu sabia. Nada tinha sido uma escolha ingênua na minha vida. As bombas que eu carregaria tinham endereço certo.
Talvez tantas certezas pudessem ter eliminado o nervosismo que residia em meu corpo – mas nada me acalmou mais que a voz constante de Ana em minha mente, sua presença fria e permanente ao meu lado.
O dia em que limpei do mapa minhas primeiras vidas foi memorável. Doloroso, sentido, mas memorável. Sabia que Ana estava orgulhosa. Naquele final de tarde, encontrei-a sentada em minha cama. Ela ergueu-se:
- Vamos indo. Ainda vou trabalhar a noite inteira no Iraque, meu rapaz.
Não tive dúvidas. Aceitei sua mão fria. Alguns destinos são certeiros como bombas de guerra – não há que se fugir deles.

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