quarta-feira, 24 de junho de 2009

Luvas de cimento

Dia desses estava fazendo alguma coisa e a televisão estava ligada. Nos dias de hoje, às vezes temos a nítida impressão de que a tevê é que está nos assistindo. Passava um filme e um policial, em um momento de filósofo, perguntava insistentemente a outro qual era o sentido da vida. “Qual o sentido da vida? Qual o sentido da vida?” Não me lembro a resposta do outro, mas deve ter sido alguma coisa que um policial responderia.O fato é que a pergunta ficou no meu ouvido - sem novidades.Ontem fui a um consultório médico. Espera que espera, eu acabei fazendo o óbvio: pegando uma daquelas revistas sem capa, cheias de fotos, para poder folhear. Uma outra revista era um magazine de variedades, que eu nunca tinha visto. Comecei a ler, até que achei alguma coisa que prendeu minha atenção: um dvd sobre a vida de um pugilista, cujo nome não me lembro - e de quem eu nunca tinha ouvido falar.
O rapaz teve uma carreira meteórica, era uma grande promessa, até que encontrou um inimigo que o colocou no chão. Não no sentido figurado, no real mesmo: o seu concorrente, numa luta, bateu de tal forma no rosto do tal pugilista que o deformou irrecuperavelmente. A capa do dvd trazia a foto do antes/depois, mostrando a figura assombrosa do que ele havia se tornado, isso aos vinte anos. Depois, soube-se: o seu concorrente havia lutado com cimento escondido dentro das luvas. Isso foi confessado. O fato é que a carreira do rapaz acabou e pouco depois ele morreu num acidente de carro.Quando li essa história, pensei no absurdo, no impensável, na última das misérias: a covardia.Pensei também que aquela era mais uma situação em que eu redefinia, dentro de mim, o sentido dessa palavra. E pensei, por fim, em como estamos, em nossas vidas, a todo momento, redefinindo aquilo que tomamos como um conceito pronto há poucos minutos.O fato é que nossa mente - esse imenso carretel que vai se desenrolando e alinhavando fatos, memórias e visões em um imenso varal que chamamos de idéia - não se cansa de perguntar o que é isso, o que é aquilo. E parece que estamos sempre fazendo com que o mundo que nos circunda se agregue em forma de significado e corra atrás de seu par - em outras palavras: fazendo com que as respostas, na contramão, só depois de prontas, se unam a suas perguntas.E aí estava, então: há alguns dias, se me perguntassem o que era covardia, eu poderia citar que era uma madrasta estrangular uma menina de cinco anos e o pai jogá-la pela janela. Depois, eu defini como covardia um pai trancar a filha por vinte e quatro anos e usá-la como escrava sexual. Agora, já posso dizer que a isso se acrescenta massacrar com luvas de cimento o rosto de um campeão.Sou relativamente jovem, tenho trinta e seis - e sei que ainda vou redefinir essa palavra muitas e muitas vezes.Agora vejo de novo aquele tal policial do filme. Ele está entrando pela minha janela-televisão e começa a perguntar de novo o sentido da vida. Acho que a vida está acima do sentido, mas hoje - hoje - eu penso que ela também está nesse eterno redefinir de coisas.Enfim, achar as perguntas certas para o monte de significados que, como serpentes, vão se enrolando em nossas mentes, nossos espíritos e nossos corações.

Texto do final de 2008 (andava perdido no micro).

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